terça-feira, 29 de abril de 2014

por inteiro.

[fria, nunca ela quis que a tomassem como menos do que gelo, como menos do que um iceberg, sempre quis que todos percebessem que havia uma certa distância a ser mantida porque qualquer contacto com ela se tornaria perigoso. fria, ela sabia que não era mas, dizia-o a si própria, havia de aprender a sê-lo, a sê-lo tão bem quanto o conseguia parecer. mas enquanto a definição não se aplica, roda a roleta russa outra vez, má sorte, péssima sorte, tanto no amor quanto no jogo e mais ainda quando os dois se juntam. tenta não chorar porque é fria, porque todos sabem que ela é fria como o gelo, e que nada a comove. foge em jeito de passeio para não ter de contar a ninguém do que foge, para que ninguém ouse julgar que é fraqueza todo esse medo que ela sente de tudo o que lhe ameace a frieza. foge. foge. senta-se na beira da estrada, numa estrada vazia, talvez a tomem como prostituta mas ela não quer saber; está com o cabelo ensopado pela chuva, tem na cara o rasto preto que o eyeliner lhe vai deixando na cara molhada, e chora. chora naquela noite, muito mais como a menina perdida que é do que como a mulher de  olhar gelado que se sente, e chora porque sabe que precisa, porque sabe que quer, porque sabe que pode. e, quando a chuva pára, acende só mais um cigarro, prolonga mais a pausa de duração indeterminada que deu a si mesma. não teria onde ir, mesmo que quisesse ir a algum sítio. não teria quem se preocupasse, quem a esperasse em casa com uma toalha na mão e com um abraço quente, mais quente do que o quente do coração que ela esconde dentro de si própria. e dá-se ao luxo de chorar mais uma vez, só mais uma vez, pela sucessão de falhas em que a sua vida se transformou, pelo medo que sente, pela insegurança. sabe que finge. sabe que se faz de forte para não mostrar ao mundo o quanto é fraca e o quanto se sente cansada. o mais que faça nunca será suficiente para que a olhem duas vezes, para que alguém a admire, para que alguém se lembre dela com um sorriso e saiba que nunca nada do mundo se lhe assemelhará, e ela sabe o que está errado. ela sabe que o mal está todo nela. sabe que nada há a fazer, senão continuar a fingir que não se importa. fingir. fingir, como sempre o fez. fingir até ao final; levanta-se, ajeita a saia. mais um cigarro. só mais um. dizem que faz mal, diz de si para si. dizem que mata. sorri. pode ser que sim.]

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