quinta-feira, 23 de outubro de 2014

excertos desse nada

Estava a ter um dia absolutamente banal, desses em que parece que deus tirou umas férias e se foi ocupar de outro mundo que não o nosso, porque parecia que este estava mergulhado nesse marasmo infernal em que nada acontece. Nem bom nem mau; limitamo-nos a respirar e a andar para a frente porque nos dizem os olhos isentos de alma que é esse o caminho certo. Estava numa reunião sem importância quando, ainda antes de a ter visto, soube que ela tinha acabado de entrar na sala.

Era impossível não a reconhecer pelos passos - sem querer, sorri -, ela continuava igual a ela própria: um autêntico furacão. Mal passou a porta, já tinha derrubado um placard que caiu em cima de um daqueles tipos de quem ninguém gosta. Corou, incapaz de perceber que nunca ninguém naquela sala a conseguiria culpar por o que quer que fosse ou a iria condenar por ser um desastre com pernas. Acho que, lá no fundo, todos estávamos apaixonados por aquela figura da irreverência e do desconcerto. Uns mais do que outros. Eu mais do que eles.

Quando os nossos olhares se cruzaram, senti o meu coração a martelar-me nas costelas e a fazer-me pensar que estava a agir como um puto idiota; até que idade é que nos é permitido ficar com as mãos a transpirar só de olhar para uma miúda? Mas ela pareceu nem reparar na minha aflição, na minha ânsia por a tirar dali e recomeçar. Que disparate - claro que não reparou; eu expulsei-a da minha vida. Conhecia demasiado bem os pontos fracos dela e foi-me muito fácil fazê-la odiar-me; ainda hoje me pergunto porquê. 

Creio que estava assustado, creio que tomei consciência de que não ia conseguir lidar com ela. Creio que tive medo - mas eu creio em muita coisa que não existe. É este o mal das crenças: servem, sobretudo, para nos apaziguar mesmo quando estamos conscientes de que estamos só a mentir a nós próprios. O meu problema é que não estava preparado para atracar num porto. Muito menos num porto seguro como ela - queria andar à deriva. Queria fazer o que me apetecesse antes de me entregar a alguém que tivesse o poder de me dominar assim. Tive medo, confesso, de me perder. E fugi-lhe por isso - mas perdi-me muito mais.

Dei por mim a suster a respiração; durante um segundo louco, ocorreu-me que ela poderia agredir-me ali, em frente a toda a gente, por eu ser um anormal. E acho que desejei que ela o fizesse - queria que ela me desse com uma cadeira em cima. Queria que ela gritasse comigo. Queria que ela mostrasse ao mundo como eu a desapontei - mas queria que ela me ouvisse. Que ela me perdoasse. Que resultasse. Entretanto, percebi que ela nunca o faria - por muita raiva com que ela tivesse ficado inicialmente, seria incapaz de me querer mal, tal miúda. Nunca me magoaria de propósito como eu fiz com ela - mal ela sabia que, quando começou a falar, a voz dela me atingiu como mil flechas. Mal ela sabe que nada magoa mais do que a doçura. Mal ela sabe que eu me arrependo todos os dias por a ter deixado ir. 

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