quarta-feira, 15 de abril de 2015

excertos do nada

Ao fim de uns tempos, aceitei marcar um encontro com a rapariga; estava já à espera, sentado naquela esplanada sofisticada, junto ao rio, onde tu nunca quiseste ir por ter um ar caro e tu tinhas mais o que fazer ao dinheiro, quando ela chegou. Estou mais ou menos certo de que não houve uma única cabeça que não se tenha virado diante daquela figura imponente, de saltos altos e vestido curto, e todo o ar de quem tinha acabado de sair do cabeleireiro; sorri-lhe. Ela era inegável e irremediavelmente bonita, mas eu não conseguia entender o porquê da dimensão do aparato. 
Perguntou-me, imagina só, porque é que a levei ali quando, sempre que me via, eu estava naquele cafézinho que fica logo abaixo do meu prédio, sabes? Aquele que tem a tinta da parede de fora a descascar-se, as mesas de madeira carcomidas pelo tempo e o dono trata-me pelo nome, traz-me o jornal e o café pingado antes mesmo de eu pedir. Aquela mulher queria saber porque é que eu não a levava a um dos meus sítios preferidos neste mundo. Imaginas tamanha falta de noção? Mas não lhe expliquei que levá-la ao café do senhor vítor me seria  quase como levá-la a minha casa, nem tão pouco lhe contei que não estava pronto para a deixar instalar-se nas minhas memórias quando ali entrasse. E então disse-lhe que ele estava em obras e voltava no domingo. 
Não tínhamos assunto. Ela não quis tomar nada e eu acabei por pedir apenas uma água, por vergonha - explicou-me, com um ar triunfante, que não queria estragar a maquilhagem, e eu devolvi-lhe um sorriso amarelo, atónito por a miúda preferir passar fome a ficar sem baton, e lembrei-me de ti, meu amor, e da tua voracidade, da forma como nunca te embaraçavas nem te preocupavas demasiado com nada. Dava-me gozo ver-te comer com prazer, ver-te ser tão real, tão humana, tão desalinhadamente perfeita. Ela parecia ser viciada em regras, parecia querer a vida com um manual de instruções - tu andavas sempre ao contrário do suposto, arrancavas em terceira e não querias saber de nada. A tua descontração tirava-me do sério mas, no final de tudo, tinha saudades desse amor calmo. 
A dada altura, ela ajeitou o cabelo, como se ele não estivesse já perfeitamente preso num rabo de cavalo; isto enervou-me. Lembrei-me do teu cabelo desalinhado, quase sempre por pentear, caído pelos ombros, e da forma mecânica e desajeitada como o metias para trás da orelha, de tempos a tempos. Vi-lhe as unhas enormes e cuidadas e lembrei-me das tuas, sempre roídas até ao sabugo, sempre uma lástima. Sempre foste tão errada em tudo que parecias preencher-me as medidas certas. E, no meio de tudo isto, nunca, nem durante um único minuto, eu consegui amar-te menos. Sempre foste tão irritante, meu amor, porque nunca te consegui decifrar o suficiente para perceber como que raio conseguias tu pôr-me tão louco por ti.  
Quando dei por mim, já nem a estava a ouvir - não me saía da cabeça a forma como fomos estúpidos. Destruímos o amor mais puro que eu algum dia senti por pura cobardia. Por conveniência - ou pela falta dela. Separámo-nos porque não dava jeito, porque queríamos ver mais do mundo. O que eu não contava era que, de alguma forma, tu te tivesses transformado no único mundo que eu queria conhecer de cor e salteado. 
Nem me lembro do que lhe disse - inventei uma desculpa e fugi dali, quase a correr; parei no meio de uma rua qualquer com um sorriso de orelha a orelha, e enviei-te uma mensagem «afinal, és a única que eu consigo amar. és o único mundo que quero conhecer. recomeçamos?». Não respondeste. Mas eu sabia que não o farias. 
Fui andando para o café do senhor vítor. Sentei-me na mesa do costume, junto à janela e, quando ele se aprontou a trazer-me o café pingado, pedi-lhe outro, sem leite, cheio. Em menos de nada, estavas à minha frente, tão desalinhada como sempre, mais bonita do que nunca.
E recomeçámos.

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