segunda-feira, 27 de março de 2017

(nem foram assim taaantas horas)

Isto de andar com os sonos trocados e de passar a vida a correr para aqui e para ali tem muito que se lhe diga: esta noite dormi tantas horas que temi sinceramente que fosse a minha cama a ficar com úlceras de pressão. Não se aguenta.

há uns dias

Uma senhora toda enxuta, após uma cirurgia ao joelho, perguntou-me se eu sabia o que lhe tinham feito porque o médico lhe havia dito que não estava a planear meter-lhe uma próstata* para já, mas provavelmente teria de a colocar - no fundo, a senhora só queria saber se já tinha a próstata no sítio. Espero que não, minha senhora, espero que não.

*prótese, entenda-se

quinta-feira, 23 de março de 2017

o drama das cabeleireiras

Desde que a minha cabeleireira, a santa padroeira dos cabelos bonitos, o anjinho capilar, a mãe das cabeleireiras, fechou o salão, que eu e sô dona mommy experimentamos cabeleireiras que nem dois velhotes a correr de tasca em tasca à procura do melhor vinho - estou a exagerar. Ela foi a um salão e eu a outro - já conheço aquele onde ela foi e tenho motivos para não gostar. Tal como arranjei motivos para desgostar daquele onde sentei o cu hoje.

Mal me sentei, comecei a tremer por dentro. A mulher estava a terminar uma manicure e ia-me lançando um olhar de assassina volta e meia, sabe deus porquê - só me apetecia sair dali a correr agarrada à cabeleira, não fosse ela pegar na tesoura e cortar aleatoriamente.

Assumo que falhei: a ideia era pintar de castanho, a fim de deixar de pintar mas, quando a senhora me entrega o catálogo e diz "entretém-te" eu vi demasiadas cores a fazer luzir os meus olhinhos para conseguir pintar de castanho. Pedi-lhe que fizesse o que lhe apetecesse - verdade seja dita, escolheu bastante bem. Juntou dois tons, algures entre o laranja e o vermelho, e ficou bonito. Só foi pena ter-se esquecido de pintar a raiz numa madeixa de cabelo... na testa.

Portou-se bem: percebeu que as pontas são só as pontas, e não voltei para casa com o pescoço ao frio. Mas esse foi um dos poucos pontos positivos porque, durante as duas horas em que lá estive, ponderei espetar a tesoura na carótida: apareceu uma velha, não muito velha, que estacionou a peida lá e ficou a conversar. Aos gritos - soube que comeu uma maçã vermelha ontem e uma amarela hoje. Vou guardar essa informação com carinho.

Esteve lá durante mais de metade do tempo - e, quando achei que não podia piorar, a mulher foi embora e a cabeleireira decidiu virar-se para mim. Não sei o que me enervou mais: entre o facto de me ter tentado impinjir produtos e tratamentos capilares e o facto de me ter feito um trilião de perguntas às quais não me apetecia responder porque sou pouco dada a fofocas, ainda não fui capaz de decidir qual é que me fez ter a certeza de que não volto lá.

Tenho de procurar uma muda ou que faça os clientes esperar na rua. Uma que se limite a prestar o serviço que lhe vou pagar... e em condições, se não for incómodo.

prince charming

[tive medo, ao início: criei-te à medida de todos aqueles que haviam cruzado a minha vida até então, encaixei-te em histórias, em medos, em anseios, onde não pertencias, onde nunca pertenceste. fiz de ti o que nunca foste porque cheguei a ti moldada por um passado que nunca foi feliz. tive medo, ao início, mas depois fizeste-me uma visita guiada ao teu ser, mostraste-me os recônditos da tua alma, rasgaste os meus medos ao meio e reinventaste-nos - e eu nunca mais tive medo. pela primeira vez na minha vida, aninho-me em ti e não penso no fim. não o temo. não te temo, não te fujo.
surpreendes-me todos os dias: quando achei que os meus horários loucos iriam ser o nosso fim, chegaste e alinhaste os ponteiros do meu relógio para me mostrar que o início é sempre que nós quisermos. criámos sextas feiras só para nós: sextas às segundas, sextas às terças, sextas aos sábados. agora é sempre sexta feira quando me perco nos teus braços e te sussurro, mais uma vez, o quanto gosto de ti - as pessoas são mais felizes à sexta feira, não é? eu sou mais feliz em todas as nossas sextas feiras, espalhadas pela semana, porque te tenho comigo.
somos bons nisto de sermos nós: fazemos uma boa dupla - fomos rápidos a descobrir as palavras que faltavam nas frases um do outro, fomos rápidos a decorar os gostos, a perder a vergonha. passou pouco tempo e parece que fazes parte da minha vida desde sempre.
nunca conheci ninguém que decorasse as datas melhor do que eu, até que tu apareceste e isso me faz gostar ainda mais de ti - todas as datas que marcam a nossa história estão rodeadas com um círculo vermelho na tua cabeça, melhor do que na minha. todos os dias que nos fizeram chegar aqui, todas as palavras chave, todos os acontecimentos, estão arquivados na tua memória, sempre prontos a serem falados, sempre prontos a mostrar que tivémos um início complicado e que lhe démos a volta. soubémos fazê-lo muito bem - e não gosto menos do que somos do que gostaria se tivéssemos batido certo desde o primeiro dia. ensinaste-me muito, tanto: ensinaste-me a confiar em ti como nunca fui capaz de confiar em mais ninguém, e isso sabe-me pela vida. mostraste-me que é possível não ter medo todos os dias, medo de perder, medo de ser trocada, medo de ser traída, medo de ser abandonada. mostraste-me que é possível ser só estupidamente feliz sem ses, sem mas, sem senãos: gosto de ti, caramba. gosto de ti desde o início, mas gosto ainda mais de ti desde que me desprendeste das amarras que me impediam de o ser plenamente. sou feliz porque te tenho comigo - e à tua pergunta até quando? eu só posso responder para sempre.
dure o nosso para sempre o que durar, seja o nosso para sempre até quando der: mas há de ser sempre para sempre - não porque não saiba viver sem ti... mas agora que sei o que é viver contigo, não me apetece.]

sábado, 18 de março de 2017

é a vida, dizem

Oitenta e um anos sulcados na pele não foram capazes de lhe roubar a beleza de um par de olhos azuis doces, tão doces, que me fez gostar dele desde a primeira vez que o vi. Disse-me que a maria dele tem oitenta e cinco anos e parecia uma jovem, e eu habituei-me a vê-la, dia após dia, sentada na cama dele com o ar assustado de quem está a perder um dos seus.

Sempre que entrava no quarto, metia-me com ele; às vezes tinha de gritar porque a idade não lhe poupou a audição, e ele ria-se. Piscava-me o olho; sorria-lhe. Ralhava-lhe muitas vezes porque teimava em andar descalço pelos corredores do hospital, mas respondia-me que era assim que estava habituado e eu não era capaz de me zangar. Perguntou-me se podia comer bolacha maria porque estava cansado de beber só chá - e comeu. Nunca se queixava.

Era doce. Talvez uns dos doentes mais doces que algum dia tive: na última vez que o vi, entrou no jogo preferido dos doentes - arrancou o catéter e disse à enfermeira que tinha sido eu. Ri-me. Piscou-me o olho quando ninguém estava a ver - não consegui não achar adorável. Gostava daquele senhor que teimava em não usar o urinol porque preferia andar até à casa de banho e fazia questão de manter a autonomia no lugar - só queria que o ajudassem a lavar as costas.
Morreu ontem de manhã - recebi a notícia como um murro no estômago. O primeiro murro no estômago desde que entrei neste mundo. A primeira morte que me causou impacto, o suficiente para que escrevesse sobre ele, para que haja um registo, para que o mundo saiba que ele existiu. Chamava-se manuel... e morreu sem saber o quanto me marcou.

what a crazy friday night, yay

Há muitos tipos de doentes, mas o que mais me dá cabo da paciência é aquele que tenta ser tão prestável que acaba por ser ainda pior do que os outros todos juntos. Aquele tipo que toca na campainha 29829 vezes durante a noite por nenhuma razão aparentemente urgente, pede desculpa de cada vez que o faz e, já de manhã, diz:

- ai, a menina está com um ar tão cansado! não conseguiu descansar mesmo nada, pois não?


Como se a senhora não tivesse feito questão de garantir que eu não teria tempo sequer para pensar em tal coisa.

sexta-feira, 17 de março de 2017

deixem-me que vos diga

Do que eu gosto mesmo é de gente simpática, de gente boa, que nos recebe com um sorriso e trabalha com satisfação e não com ar de mal fodida - hoje fui tirar sangue e a técnica de análises era tão querida que estou a pensar ir lá tirar sangue outra vez amanhã só para conversar com a miúda.

terça-feira, 7 de março de 2017

de ser tas, ao, aam ou o que mais lhe queiram chamar

Nascer com uma malformação congénita também é aprender a chamar casa ao hospital onde te espicaçam as veias e te ensinam quais os cheiros e as cores do bloco operatório. Às vezes ainda sinto o cheiro do creme anestesiante que me aplicavam em ambas as costas da mão, minutos antes de mais uma ida à terra dos sonhos patrocinada pelo propofol.

Essa foi a minha realidade: médicos e mais médicos. Consultas atrás de consultas, sessões de porquê a mim? intercaladas com momentos de podia ser bem pior!. E eu podia ser uma traumatizada, podia ter medo de batas brancas, podia ter pavor de agulhas, podia desmaiar ao ver sangue - mas não sou. Nunca fui.

Lembro-me de ser pequenina e dizer à minha mãe que um dia ainda haveria de trabalhar num hospital, mesmo que fosse a fazer limpezas - a profissão era-me indiferente desde que eu pertencesse àquele mundo espetacular onde as coisas aconteciam. Com o tempo, percebi que o meu sonho tinha um nome e envergava uma farda branca: quero ser enfermeira, que quero. Mas depois vi esse sonho adiado, vi-o transformar-se numa bata azul, vi-o desfazer-se diante dos meus olhos na atitude resignada de quem poderia sempre estar pior - felizmente, essa crise passou.

Durante os estágios, disseram-me várias vezes que os meus esforços seriam inúteis porque nunca me poderiam garantir um emprego. Estavam certos, eu sabia-o, mas não me importava: fazia questão de dar o meu melhor independentemente de esta não ser a profissão que quero exercer até ao fim dos meus dias. E sentia-me feliz: a certeza de que estamos a ajudar alguém é e será sempre insubstituível.

Afinal enganaram-se: parece que esforçar-me tanto no estágio me abriu mesmo uma porta. Parece que dar o meu melhor também trouxe frutos: depois de dois meses à procura de trabalho, o meu telemóvel tocou e era do último sítio de onde esperei receber uma chamada. Comecei a trabalhar num dos serviços onde estagiei no dia seguinte.

Quando cheguei, vi um sorriso ao fundo do corredor. Bem vinda a casa! E eu sorri também.
É isso mesmo: casa.

quarta-feira, 1 de março de 2017

gira a roda da sorte outra vez

Acordámos em março: o terceiro mês do ano, o primeiro a trazer-me datas de acontecimentos menos felizes; daqui a quinze dias fechamos a primeira porta, sopra-se a vela do primeiro acontecimento filho da puta - e, daqui para a frente, é sempre isto. Fechar portas. Ver um ano passado sobre as coisas e trancá-las a sete chaves no passado. 

Acordámos em março com uma vitória que é também uma lambada de luva branca: entregarem-nos as coisas de bandeja não é mau de todo... mas a sensação de que ganhámos algo pelo empenho e pela dedicação é impagável.

Acordámos em março... e que seja um mês melhor.