domingo, 16 de abril de 2017

hoje

Hoje foi dia de páscoa: acordei, às seis e meia, aborrecida com umas quantas questões injustas e a sofrer por antecipacão com os 12 turnos, quase seguidos, que tenho pela frente. Nunca dei importância à páscoa até este ano: falhei almoços de família com o mesmo pesar que tenho falhado redondamente nas horas de sono.

Quando cheguei ao hospital, esqueci-me da data. O barulho de fundo era o habitual, os cheiros do costume, as pessoas que repetem a estadia pelos azares da vida, e outras que lá caíram por acaso - não há dias nem horas. Há correria a toda a hora.

Depois, vi-o: já o conhecia. Conheci-o há umas semanas, noutro internamento - é cliente habitual no serviço. Rapaz simples, condenado pelos genes e tramado por uma doença, trato-o por tu para facilitar, embora - descobri-o hoje - tenha idade para ser meu pai. Conversámos. Meti-lhe o doce de amora no pão e o açúcar no café com leite - agitei a colher na caneca e coloquei-lhe o tabuleiro à frente. Dói-me sempre um bocadinho ter de fazer as coisas mais simples por alguém que nunca as conseguirá fazer pelas suas próprias mãos, os dedos curvados, desprovidos de sensibilidade. Um coração inocente que vai sendo amputado, dedinho a dedinho, com a leviandade de quem vai só tirar sangue. E dói.

Confesso que já me irritei com ele, por uma ou duas vezes: mas porque é que só pedes para trocar a fralda quando já tens a cama ensopada? É fácil: porque ele não sente absolutamente nada antes de se sentir encharcado. Fiquei zangada comigo mesma quando percebi isso, e hoje agradeci-lhe quando me pediu que lhe trocasse a fralda a tempo.

Ouvi-o comentar que não sabia se o pai o iria visitar hoje. Mas ele vem todos os dias? Respondeu-me que não, e os olhos dele não se despregavam do corredor. Recebeu visitas: perguntou pelo pai. Ouviu vozes na enfermaria e disse que parecia a voz dele - doeu-me ver aquela centelha de esperança no olhar dele, que desapareceu quando a tia lhe disse que ele não viria. Foi para os copos com a chifruda, como é hábito.

Ele, aquele menino grande, esperava-o numa cama de hospital - e eu percebi que às vezes também é isto, que deixei a minha família em casa para ir ser a família de quem se sente abandonado. Hoje foi domingo de páscoa e, apesar de tudo, valeu muito a pena ter tido de trabalhar.

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