quarta-feira, 2 de agosto de 2017

hoje

[arriscar-me-ia a dizer que ainda não houve um dia, um único dia, em que as saudades que tenho dela não me tivessem pesado no peito, mas alguns doem mais do que os outros, e os verões vêm com o travo amargo das recordações emaranhadas: eu devia atravessar a estrada descalça, depois de almoço, entre a casa dela e da minha (outra) avó. deveria tocar à campainha, subir a correr, para nos instalarmos, mais tarde, as três nas escadas, eu e ela com uma caneca de café, que de café tem muito pouco, mas que seria sempre o melhor do mundo.. elas deveriam rir-se de mim: no pico do verão, iria estar enregelada, a fugir das sombras, e eu iria meter-lhe as mãos frias nas faces. de uma e de outra.
iríamos falar sobre tudo: sobre a tola da vizinha que dizia, orgulhosamente, que tinha uma saia há 15 anos e só a tinha lavado uma vez, sobre as idas à praia e os pic-nics à sombrinha uma vez que a família estivesse reunida. e iríamos especular, sim, sobre a chegada dos nossos, daquela outra parte de nós que vive longe, e que insiste em mentir-nos sobre a data da chegada - iriam insistir comigo, certas de que eu saberia a verdade. e, às vezes, eu não iria saber. outras, iria mentir, fiel às minhas promessas. 
mexer-lhe-ia nos caracóis. gostava de a (des)pentear. de lhe pintar as unhas. de a fazer sorrir, no geral. e, em agosto, seríamos todos um: os churrascos no pátio, as caminhadas tardias em pelotão. ela, feliz porque tinha uma família grande que a ama... e nós felizes porque a tínhamos a ela.

passou mais de um ano: arriscar-me-ia a dizer que não há um único dia em que não tenha pensado nela... mas às vezes, só às vezes, finjo esquecer-me de que não a voltarei a ver.
e às vezes, muitas vezes, sonho com o abraço que não lhe cheguei a dar.]

2 comentários:

Tulipa Negra disse...

Nem tenho palavras. É um texto muito bonito que expressa muito bem o amor que tens pela tua avó.
Infelizmente a minha já não está comigo à cinco anos e, tal como tu, não tive ainda um único dia em que não sentisse a falta dela...

disse...

O que mais revolta na morte, é a puta ser irreversível.